domingo, 5 de dezembro de 2010

Perfil: O Velho Bira

O Velho Bira sabe ler, e muito bem, obrigado.


Toda vez que eu conto uma história, dizem que sai diferente da outra vez que eu contei”. Com esses dizeres icônicos, Seu José Bonfim, O Velho Bira, como é conhecido, deu início à primeira conversa que tivemos sobre sua vida.



Antes de qualquer coisa, é importante contextualizar a aparição e teor das palavras do Velho Bira. Após enfrentar algumas horas de trânsito intenso dentro de um dos desconfortáveis microônibus de Brasília, os chamados “zebrinhas”, desci na parada da quadra 302 sul. Em meu caminho para o trabalho, vi apenas de relance, mas foi o suficiente para atrair minha atenção e me fazer ficar estático encarando a cena. Um mendigo, de barbas e cabelos muito brancos e longos, com trapos servindo de vestimenta e um chinelo velho calçado nos pés imundos, lia calmamente, sentado em cima de uma caixa de madeira, o jornal do dia. Todos os filtros de preconceito que o senso comum acaba erguendo em nossa mente foram ativados e, após alguns segundos, derrubados como uma fileira de peças de dominó: um atrás do outro. Pensei em me aproximar, mas a última barreira no meu cérebro, a do receio, manteve-se firme e forte, apesar de minhas tentativas em burlá-la. Continuei meu caminho e deixei para lá.



À noite, descobri que não conseguia tirar a história da cabeça.
“Um mendigo lendo o jornal do dia”, pensava, antes de pegar no sono. Na tarde seguinte respirei fundo e me aproximei do velho. Um simpático “Olá” seguido de olhares curiosos foram minha recepção de boas vindas. Depois de explicar que queria fazer uma entrevista com ele e minha intenção era utilizá-la para traçar um perfil, o senhor mostrou seu entusiasmo: “Sou o Seu José Bonfim, o Velho Bira, como o pessoal da região gosta (de chamar)”, disse “Já pode anotar isso aí e vamos nessa!”. Não entendi o porquê da animação repentina do Velho Bira, mas o fato é que esse paulista, atual residente da esquina da Superquadra 302 sul, se empolgou com a perspectiva de ter sua vida analisada.



Aos 12 anos de idade, José do Nascimento Bonfim descobriu que não era nordestino. “Uma verdadeira decepção”, conta o paulistano da gema. “Minha mãe tinha sotaque, meu pai tinha sotaque, até eu tinha um sotaque brabo (sic). Pra mim era como se eu fosse um cearense cabeça-chata desde bebezinho e tivesse vindo pra São Paulo junto com os outros cabras que queriam uma vida melhor. Pra mim foi quase a mesma coisa do que se dissessem que eu fui adotado. Não fazia mais sentido carregar orgulho de ser nordestino, né!?”. A notícia surgiu em meio a uma discussão com a mãe, Dona Maurina, quando o então garoto, José, exigiu voltar para a sua terra. “Eu dizia que não agüentava mais ser bulinado (sic) em São Paulo, eu queria pelo menos saber como era onde eu tinha nascido. Foi aí que mamãe soltou a notícia. Fiquei uma semana quieto”.



José diz que nunca se sentiu parte da grande metrópole e a idéia de que aquilo, na verdade, era muito maior do que o que ele estava acostumado ao nascer, era uma espécie de consolo devido a sua situação de morador de rua. “Houve um tempo em que moramos em uma palafita lá pros cantos de Itaim, mas meu pai foi atropelado e tivemos que sair. Minha mãe arranjou um espacinho ali perto do Jaguaré, em Osasco”. A região referida é, hoje, onde fica a Cidade de Deus, um complexo do Banco Bradesco que fica no município de Osasco e é maior do que um punhado de condomínios de luxo no Brooklin. Esse lugar, curiosamente, foi onde a mãe de Seu Bonfim lhe ensinou a rezar e, através de uma bíblia surrada, a ler.

“Nunca soube de onde veio aquela Bíblia velha, mas minha mãe disse que era a última lembrança que ela tinha da avó e nunca tinha perdido. Foi com ela (a Bíblia) que eu aprendi a ler as letras e tudo mais.”. Após alguns meses decifrando vogais e consoantes complicadíssimos para um garoto de 11 anos, ele começou a mendigar pela região. Então aprendeu a escrever, lendo cartazes e reproduzindo as letras. Após algumas semanas pedindo esmolas nas ruas, conheceu outro morador de rua que logo fez parceria com o garoto. “Naquela época, tinha pouco pedinte na rua, era só um por esquina. Às, às vezes, nem isso. Hoje em dia é um inferno pra vocês, gente mais rica, eu sei, mas fazer o que, né?!” ( E aqui abro um espaço para deixar registrado que eu fiquei completamente sem graça diante dessa fala). O Velho Bira conta que seu novo colega, Fransênio, lhe ensinou o “manual de sobrevivência nas ruas de São Paulo”. Contou os lugares que eram perigosos e os que não eram, contou onde eram os pontos mais propícios para pedir esmola e até ensinou como pegar ônibus sem pagar. “Ele era uma pessoa muito prática, acho que é essa a palavra. Me ensinou um bocado de coisa. A história do ônibus era genial. Me ensinou também a roubar. Pode até ser uma coisa errada, mas na época eu tinha que sobreviver, né?. Acho que nunca machuquei ninguém, então tá tudo certo.


Seu José cresceu em meio à marginalidade paulistana, mas nem por isso deixou de aproveitar os privilégios da “burguesia”. “Teve uma época em que tentei arranjar emprego”, conta. “E até consegui algumas coisinhas. Acho que o ano era 1975, ou mais, não sei, consegui um emprego de faxina no Teatro Municipal. Vi peça de gente famosa. Vi gente importante”. O tom era quase nostálgico e percebi que sua voz estava levemente embargada, mas o senhor continuava seus relatos. Sua adolescência e vida adulta foram uma espécie de transição entre bairros de São Paulo. O período de seis meses que passou nas ruas de Moema foram os mais longos que ele gastou em um mesmo lugar. “Eu ficava naquela expectativa de que algum dia alguma coisa boa ia acontecer. Que eu ia roubar alguém importante ou achar uma nota de cem no bueiro. Vi num livro que eu peguei da banca uma coisa parecida. Eu vivia alegre, achando que algo grande ia acontecer, mas aí mamãe morreu e eu fui preso”. José não entra em detalhes sobre sua prisão ou sobre a morte de sua matriarca, mas o ar sombrio que ele subitamente assumiu serviu melhor do que qualquer palavra para traduzir a tristeza e a desilusão que o momento trouxe ao Velho Bira. “Na cadeia eu apanhei, fui bulinado e pensei que ia morrer, mas eu fui solto”.



Entre os poucos amigos de Seu Bonfim no local em que atualmente reside, comenta-se sobre essa parte de ter sido preso não ser verdade e que, na realidade, após a morte de sua mãe, José ficou vagando por São Paulo e, por algum motivo, entrou num ônibus e misteriosamente foi parar em Brasília. “Uma vez ele encheu a cara e disse isso daí. Acho que bebum não mente, não é mesmo!?” relatou Júnior “Guaim”, “vizinho” de Seu José. “Ele conta muita história de como veio parar aqui. Um dia, disse até que tinha vindo na turbina de um desses aviões grandes. Não sei se dá pra fazer isso não, meu irmãozinho”. A desconfiança da maioria das histórias de José ronda até mesmo aqueles que não são próximos ao homem.

Maria “Zureta”, flanelinha mais conhecida da região, diz que o velho se confunde o tempo todo e que as datas que ele diz ter feito determinadas coisas não batem com a idade que teria. “Mais de uma vez ele contou a mesma história cheia de fantasia pra todo mundo, não lembrando nem para quem tinha contado o que. O Velho Bira já tá ‘biruta’”. Estando “biruta” ou não, volto para conversar com o homem e lhe faço aquela que, descobri mais tarde, seria a última pergunta de nossa conversa. “Por que você lê o jornal todos os dias, Seu José?” perguntei no tom mais polido que pude assumir. A resposta me deixou uns quinze minutos refletindo: “O jornaleiro ali da quadra me dá um exemplar todo dia. É uma pessoa boa. Todo dia eu vejo no jornal as notícias e não entendo a maioria, mas eu sei ler direitinho e ninguém aqui sabe, pelo menos não tão bem. Eu leio porque não era para eu estar assim, aqui. Devia ter uma coisa pra mim, era pra eu ser um nordestino que conseguiu as coisas, mas eu nem nordestino sou. Sou melhor que eles, eu sei ler direitinho.” Seu José entra em transe, fala sozinho e se vira para a parede.


Um dia após esse diálogo, o Velho Bira desapareceu do ponto em que costumava ficar. Ninguém tinha notícia dele e, para a maioria das pessoas, nem fazia muita diferença. Seu Bonfim sempre esteve próximo da grandeza e do luxo, mas nunca pôde fazer mais do que vislumbrar tudo isso, sem jamais desfrutar. Sua vida parecia prestes a dar uma guinada a qualquer instante, mas irremediavelmente o manteve na condição de indigente. Apesar de letrado e orgulhoso disso, pois o diferenciava dos demais mendigos e pedintes, aos olhos da sociedade nunca foi mais do que um maltrapilho encostado num canto pueril. Talvez a resposta para minha dúvida no começo, sobre o porquê de tamanho entusiasmo ao começar a entrevista, seja justamente essa. O Velho Bira gostava de qualquer coisa que o destacasse da classe social que ele, a contragosto, integrava. A história de vida de Seu José tinha tudo para ser uma espetacular narrativa de superação e reviravolta, mas culminou em muita frustração. O Velho Bira, Seu Bonfim, Seu José, ou melhor, Senhor José do Nascimento Bonfim, nascido em São Paulo capital, provavelmente, na década de 60, nunca chegou a revelar o quão verdadeira e profunda era sua amargura. Afinal, como ele mesmo declarou: “Toda vez que eu conto uma história, dizem que sai diferente da outra vez que eu contei”.

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