Ao escutar o título “As aventuras de Pi”, tradução
brasileira para “Life of Pi”, por algum motivo, pensei nos contos de Malba
Tahan, que preencheram várias tardes de leitura durante o Ensino Médio. Talvez
o nome do protagonista, que remete ao algarismo grego símbolo de um número
importante na Matemática, tenha feito com que eu ligasse os pontos. O fato é
que os contos de Malba Tahan eram extremamente divertidos e, ainda que escritos
em uma linguagem muito formal para um adolescente, sempre me deixaram entusiasmado
e louco para descobrir o fim, que geralmente reservava surpresas.
Essa associação inoportuna talvez seja o real motivo para
eu ter me decepcionado com o filme, dirigido pelo ganhador do Oscar, o taiwanês
Ang Lee. Mas eu não creio que seja apenas isso. O visual da obra como um todo é
belíssimo. Animais extremamente bem reproduzidos em computação gráfica e
efeitos de luz pontuais transformam a estética do filme na atração principal.
Algumas tomadas em que o oceano é retratado como o universo, com os peixes e
águas-vivas fazendo as vezes de constelações, são de tirar o fôlego.
Infelizmente a história não fica à altura do conceito artístico.
Bonito pra chuchu... e só!
Bonito pra chuchu... e só!
O enredo nos conduz a um escritor com “bloqueio” (quase vivido
por Tobey Maguire, mas representado por Rafe Spall no fim das contas) que vai à
casa de Pi para ouvir sua incrível história sobre como sobreviveu ao naufrágio
da embarcação que levaria sua família e os animais do zoológico gerenciado por
seu pai ao Canadá. Com o relato de nosso personagem principal, um indiano
seguidor de três religiões ao mesmo tempo, o escritor espera recuperar a inspiração para
pensar no próximo livro.
É aí que, por meio de flashbacks (por ter diversos atores
indianos confesso que, preconceituosamente, fui remetido à maneira de contar o
enredo de “Quem Quer Ser Um Milionário?”), somos introduzidos à tal vida de Pi,
que se vê preso em um bote salva-vidas em meio ao Oceano Pacífico com uma
zebra, uma hiena, um orangotango e um Tigre de Bengala. Tudo parece ser
interessante a princípio, mas termina por decepcionar bastante.
O roteiro adaptado da obra de Yann Martel, que se baseou
(alguns dizem plagiou) no livro “Max e os Felinos”, do brasileiro Moacyr
Scliar, tenta, então, conduzir o expectador a uma épica jornada espiritual em
que, supostamente, a presença da figura denominada Deus se tornaria inegável.
Digo logo de cara que a proposta, ambiciosa a princípio, se mostra apenas
pretensiosa e acaba por deixar a trama confusa e exigindo reflexão (e alguma
discussão com colegas) para ser entendida, no máximo, parcialmente.
O ator Suraj Sharma, que vive o jovem e náufrago Pi, no
entanto, foi extremamente bem escalado e consegue passar as emoções certas,
além de demonstrar um timing cômico decente. Gérard Depardieu faz uma ponta de
luxo como o cozinheiro do navio, mas, de resto, o elenco passa quase
despercebido. Durante praticamente todo o segundo ato e grande parte do filme,
na verdade, temos apenas Pi encarnando Tom Hanks em “Náufrago”, mas com um
Tigre de Bengala com desejos assassinos e muita fome ao invés de Wilson, a
simpática bola de topete. Ah sim, as dificuldades são quase todas passadas em
meio ao Oceano Pacífico, o que deixa o miolo do filme, apesar de belo em alguns
pontos, extremamente maçante.
Pi pega suprimentos no barco, o Tigre tenta atacá-lo. Pi
tenta marcar território, o Tigre tenta arrancar sua cabeça. Pi tenta pescar, o
Tigre encara ele com olhar assassino.
É assim que o filme se desenvolve. A certo ponto quase
nos esquecemos de que aquilo é um flashback e passamos a acreditar que estamos
presos àquele lenga-lenga. Eternamente à deriva ao lado de Pi e seu tigre
semi-domesticado.
Pi pensando na morte da bezerra. Cena corriqueira em suas "aventuras"
Pi pensando na morte da bezerra. Cena corriqueira em suas "aventuras"
O devaneio foi tão grande, que Ang Lee, a certo ponto, finalmente lembra-se da mensagem espiritual a ser passada e insere uma ilha mágica no
meio da história. Teoricamente esse pedaço de terra seria uma mensagem divina,
mas apesar da explicação forçada do também narrador Pi, este mais velho vivido
por Irrfan Khan, fico me perguntando qual foi o propósito desse lugar lotado de
suricatos (que também não têm qualquer propósito ao conteúdo final).
A impressão que fica é que o diretor tinha dois
objetivos: empregar recursos visuais que justificassem os 120 milhões de
dólares investidos em um roteiro tão pobre e pretensioso, e trabalhar a atuação
de Suraj Sharma, que, diga-se de passagem, passou no teste pois teve de
demonstrar sua capacidade contracenando com um tigre imaginário por mais de
duas horas.
Como as imagens são apenas bonitas e expressam muito
pouco do que o filme realmente tenta dizer, o narrador precisa, nos instantes
cruciais, explicitar de maneira bem didática qual foi a intervenção divina ou
ensinamento religioso transmitido pela cena que está sendo mostrada ou acabou
de passar. É ridículo.
Além da falta de clímax, que torna o fim do filme algo
abrupto, o terceiro ato ainda desmistifica a história que acabou de ser contada
e - inacreditavelmente direi isso - transforma a conclusão do enredo em algo
próximo a Amanhecer. Sim, Ang Lee transformou “As aventuras de Pi”, que deveria
ser um conto de fadas ou pelo menos uma épica jornada de crença espiritual, em
algo próximo à odiosa “saga” de vampiros constipados e lobos depilados de
Stephanie Meyer. É ver para crer.
A visão, aliás, é sua maior aliada neste filme e,
especialmente na sessão 3D, quando a história se tornar invariavelmente chata e
nada de bom estiver acontecendo (como uma baleia brilhante saltando ou... ai
ai, quando o Tigre estiver, pela 15ª vez, tentando comer Pi) simplesmente
preste atenção nas cenas. Cada detalhe, cada jogo de cores, cada elemento do mise en scène é um deleite.
E talvez esse seja o único motivo que faça valer a pena
assistir a esse filme nos cinemas: a beleza gráfica. De resto, vá ler Malba
Tahan que encontrará contos mais interessantes, ou então a Bíblia, se quiser
contos de fadas de cunho igualmente espiritual.